Fernando Pessoa, figura central do modernismo português, é amplamente reconhecido pela sua obra poética e pela multiplicidade heteronímica que redefiniu a literatura do século XX. Contudo, a sua incursão pelo teatro, embora mais discreta, constitui um campo de grande interesse crítico. O teatro de Pessoa, e em particular a peça O Marinheiro (1915), inscreve-se num projeto estético que procura romper com as convenções dramáticas tradicionais e aproximar-se de uma forma de expressão simbólica, introspetiva e filosófica. Longe do teatro realista ou naturalista de finais do século XIX, Pessoa propõe um “drama estático” – um conceito que reformula a própria natureza do teatro e da representação.
O termo “drama estático”, cunhado pelo próprio Pessoa, designa um teatro onde o conflito exterior é substituído por uma tensão interior, psicológica e metafísica. Em vez de uma sucessão de ações ou acontecimentos, o centro dramático desloca-se para o pensamento, para o sonho e para o discurso. O drama deixa de ser uma representação da vida exterior para se tornar uma meditação sobre a existência. Pessoa escreve, em 1913, num fragmento teórico, que o drama estático é “a história de uma alma” e não de um acontecimento. Este ideal estético aproxima-o das vanguardas simbolistas e do teatro poético europeu de autores como Maeterlinck, cuja influência é visível em O Marinheiro.
Escrita em 1913 e publicada em 1915 na revista Orpheu, O Marinheiro é uma peça em um único ato, composta quase inteiramente por diálogo, sem ação visível. Três mulheres velam um cadáver num castelo indeterminado, situado “num país desconhecido”. A atmosfera é de imobilidade e suspensão temporal: nada acontece, o tempo parece deter-se, e a ação dramática decorre apenas no domínio da palavra e do pensamento. A única narrativa tangível surge no relato de sonho de uma das mulheres — o sonho do marinheiro que dá título à peça —, funcionando como metáfora central de evasão e de criação imaginária.
O sonho do marinheiro, que imagina uma ilha onde nunca esteve, representa o poder da imaginação como substituto da realidade. Tal como o poeta, o marinheiro cria um mundo inexistente, mais verdadeiro do que o real. A peça, assim, interroga os limites entre sonho e realidade, vida e morte, presença e ausência — temas caros a Pessoa. A ausência de ação concreta, a linguagem lenta e musical, e o ambiente crepuscular reforçam a dimensão simbólica e onírica da obra.
Em O Marinheiro, o sonho funciona como instrumento de revelação. Através dele, Pessoa encena a sua conceção do homem moderno como ser desdobrado e consciente da sua própria irrealidade. A terceira mulher, ao narrar o sonho do marinheiro, cria uma ficção dentro da ficção — um teatro dentro do teatro — que reflete a própria condição do sujeito pessoano: a de ser simultaneamente criador e criatura, real e imaginado. Esta estrutura metateatral antecipa as experiências modernistas e pós-dramáticas do século XX, nas quais a representação se volta sobre si mesma.
O simbolismo do mar é igualmente relevante. O mar, elemento recorrente na poesia pessoana, surge aqui como metáfora do infinito e da busca do absoluto. O marinheiro sonha com uma terra que talvez não exista, assim como o poeta procura uma verdade estética que transcende a experiência concreta. A peça, assim, transforma-se num espaço de meditação sobre a condição humana: o homem, como o marinheiro, vive entre o desejo de evasão e a consciência da sua prisão existencial.
Com O Marinheiro, Pessoa propõe um teatro de ideias, de estados de alma e de linguagem, antecipando conceções que apenas décadas mais tarde se tornariam comuns no teatro europeu. A ausência de ação e de personagens individualizadas, o ambiente rarefeito e o discurso poético aproximam esta obra de um “anti-teatro”, no sentido em que recusa a ilusão dramática e privilegia a reflexão. Este caráter visionário explica a dificuldade de enquadramento da peça na cena teatral da sua época: O Marinheiro não se destina tanto a ser representado como a ser lido, a ser vivido interiormente.
Apesar da sua brevidade, a peça sintetiza muitas das inquietações filosóficas e estéticas de Fernando Pessoa: o desdobramento do eu, a irrealidade da existência, o poder criador da imaginação e a nostalgia de um absoluto inatingível. Trata-se de uma meditação dramatizada sobre a própria natureza da arte e da consciência, onde o sonho surge como forma suprema de ser.
O Marinheiro ocupa um lugar singular na obra pessoana e na história do teatro português. Como “drama estático”, constitui uma rutura com o teatro de ação e um marco da modernidade literária. Através da imobilidade e do silêncio, Pessoa cria uma obra profundamente metafísica, em que o teatro se converte num espaço de introspeção e de transcendência. Mais do que uma peça, O Marinheiro é um poema dramatizado sobre o sonho e o ser, e o seu valor reside justamente na radicalidade com que questiona os limites da representação e da realidade.